“À noite” de FJ Sanz, um relato gótico
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Vivo à noite.
Meus sentidos me descrevem com precisão total quanto acontece ao meu redor. Todo o que é invisível para os que convivem comigo resulta diáfano e brilhante a minha perceção.
Alço o rosto para o céu preto e exalo um curto suspiro. Talvez só seja uma lembrança nostálgica da minha anterior existência, de alguma coisa que foi sempre tão natural como a própria vida e que, agora, fica tão longe e esquecida, pois os meus pulmões atrofiados já não saberiam o que é um sopro de oxigênio se não for porque preciso de ar para fazer vibrar as cordas vocais que me permitem falar.
Nesse curto suspiro, essa falsa baforada de vida, aspiro o perfume que emana da pele daquela jovem que está a olhar pela janela, do seu curto e molhado cabelo, com seus olhos perdidos nas estrelas, apenas um pouco mais acima de onde eu fico, aferrado às sombras deste velho beiral. O tufo da poluição e das lixeiras já ficou suprimido do meu olfato, tanto tempo há que moro nesta cidade. Mas o cheiro terrível a fritos que sai fora dessa cozinha começa a colar-se ao céu da boca. Vomitaria se meu estômago ainda for capaz de fazer.
Não tenho fome. Ou sede. Essa distinção deixou de ter sentido há… quanto? Dez anos? Vinte? Realmente o ignoro, a cidade não mudou mesmo tanto como para eu apreciar o tempo passado desde que caminhava por aquelas ruas ali em baixo e era eu quem se sentia como uma possível vítima. Embora, pensando bem, esta cidade não mudou nada em muitos anos, nem vai mudar.
Uma coisa sim é diferente. Já não sou uma presa. Mas também não sou caçador. Melhor, me considero um mendigo, sim, um mendigo que tem de roubar aquilo que precisa para a sua subsistência e que, de outro modo, não o poderia conseguir.
Não mato. Não assassino minhas presas. Me alimento o necessário e deixou que pensem que, simplesmente, foi um pesadelo. Ou um sonho intenso que duvidam se foi horrível… ou tremendamente prazenteiro? Não sei, mas não acabo com eles. Só o homem é tão estúpido para destruir o meio que lhe alimenta. E a minha humanidade faz parte do passado.
Falando de presas… esse som é inconfundível. Esse ruído de saltos altos apressados indica que alguém se meteu no bairro errado, a uma hora ainda mais equivocada. Sim, agora posso vê-la, ao abrigo do seu casaco de cor castanha, embora não parece ter certeza se se esconder do frio da noite ou dos que moram nela. Estou inclinado a pensar no segundo, pela forma como se envolve com os seus braços e olha para o chão.
Nossa, levanta seus olhos, para mim, embora não me possa ver. Ela nada pode distinguir na escuridão que me rodeia, nem o meu casacão preto. Fico surpreso. Ela possui uma intuição muito aguda, mas é uma pena, errou seu caçador desta noite. Hoje, eu sou apenas um espetador, o verdadeiro perigo a aguarda mesmo quando atravessar a rua, nessa esquina. Tomara que tudo termine rápido, não gostaria que o cheiro do sangue dela me alcançasse e quebrasse minha calma.
Hum… Gritos. Luta.
Não. Não houve sorte. E esse cheiro não me deixa pensar com claridade. Mete-se em mim e acorda sensações, instintos que lutam para se livrar e procurar o seu tributo.
O feitiço quebrou. A cena mudou, apesar de ser o mesmo cenário e a lua ainda brilha no céu. Talvez amanhã aconteça de novo, talvez em alguns anos.
Pouco importa. O sangue me chama.
1 comentario
Rairinda · 21/06/2020 a las 13:54
Muito bonito esse relato. Gostei muito desse parágrafo:
Uma coisa sim é diferente. Já não sou uma presa. Mas também não sou caçador. Melhor, me considero um mendigo, sim, um mendigo que tem de roubar aquilo que precisa para a sua subsistência e que, de outro modo, não o poderia conseguir.
Parabéns pela inspiração para escrever! 🙂